"O streaming permite que músicas improváveis se tornem hits"
O jornalista Kelefa Sanneh está na Flip e fala sobre música pop e comunidades nesta MargeM 227
Esta edição da MargeM está bem diferente, você vai notar. Em vez das notas curtas sobre assuntos diversos, temos apenas uma entrevista, com o jornalista e crítico de música Kelefa Sanneh.
É um texto looongo, mas acho que vale a pena a leitura, porque Sanneh é autor de Na Trilha do Pop: A Música do Século XX em Sete Gêneros (Todavia; trad. André Czarnobai) e, por causa desse belíssimo livro em que faz uma análise afiada sobre a música pop, está no Brasil, como convidado da Flip.
Nascido no Reino Unido, criado nos EUA, filho de mãe sul-africana e pai gambiano, Kelefa Sanneh foi crítico de música pop do New York Times (onde escreveu este artigo que até hoje é fervorosamente discutido e pavimentou a criação do neologismo poptimismo ) e, atualmente, é repórter da New Yorker (dá uma olhada neste ensaio). Há pouco, lançou o primeiro livro, Na Trilha do Pop, em que mistura memórias com análises musicais e comportamentais a partir de sete gêneros: rock, country, hip-hop, punk, r&b, dance e pop.
Com um texto fluido, costurado por argumentos sólidos e que alcança um horizonte abrangente, Sanneh nos ajuda a entender como a música pop se desenvolveu nas últimas décadas, oferecendo um olhar cuidadoso mesmo para artistas e gêneros que são normalmente escanteados na bibliografia do pop, como o hair metal e o dad rock.
Um trecho do livro, em que Sanneh aponta como o rock já era tratado como coisa “velha” lá nos anos 70:
“Nos anos 70, muitos músicos e ouvintes aparentemente concordavam com a visão de que o rock ‘n’ roll estava se decompondo ou se desintegrando. (...) ‘Lembro quando o rock era jovem’, cantou Elton John em Crocodile Rock, acrescentando que ‘os anos se passaram e o rock simplesmente morreu’; a melodia alegre, inspirada pelo rock dos anos 50, ajudou a dar uma adocicada nessa amarga derrocada cultural”.
Na nossa conversa, Sanneh falou coisas como:
→ “Eu me interesso bastante nesses tipos de música que muitas pessoas estão ouvindo mas que não são levadas tão a sério.”
→ “Um gênero musical é, na verdade, uma comunidade. Uma comunidade de ouvintes. Uma comunidade de músicos. Mas, como comunidades, às vezes os gêneros podem parecer sufocantes.”
→ “Na música pop, a estrutura econômica, quais empresas estão ganhando dinheiro, molda não apenas a maneira como ouvimos música, mas a própria música, como ela é feita.”
→ “O streaming permite que diferentes ou improváveis músicas se tornem hits.”
→ “Quando falamos sobre política, muitas vezes estamos falando sobre as divisões na sociedade e como precisamos curar essas divisões e nos unir mais. Com a música, às vezes é mais fácil ver por que, de certa forma, essas divisões podem ser algo bom.”
→ “Como profissão, (a crítica musical) ficou um pouco obsoleta, Mas e se você definir crítica musical de maneira mais ampla, algo cultural? Se você definir a crítica cultural como a conversa que temos sobre música, bem, essa conversa está acontecendo mais do que nunca. “
→ “Me surpreende o que as pessoas amam, o que se torna popular. É fácil para mim ser otimista porque estou sempre ouvindo algo que não esperava ouvir.”
A seguir, a entrevista com Kelefa Sanneh.
MargeM: Recentemente você fez uma playlist para a revista Quatro Cinco Um e, entre as músicas que te lembram o Brasil, escolheu uma do Sarcófago. Por que uma música de heavy metal te faz lembrar do Brasil?
Kelefa Sanneh: Uma das coisas interessantes sobre o mundo do metal era a forma como ele era tão internacional, esse movimento nos anos 1980 de jovens, fanzines enviando fitas cassete de um lado para o outro. E então era possível que uma banda do Brasil, como o Sarcófago, pudesse ser realmente influente, certo? Uma era em que as pessoas estavam começando a descobrir o metal extremo e, sabe, quando sai o disco do Sarcófago, aquilo era tão intenso, tão misterioso, e talvez extra-misterioso para ouvintes fora do Brasil, porque não sabemos muito sobre o contexto de onde está vindo.
Quando as pessoas pensam em música mundial, muitas vezes não estão pensando em heavy metal. Mas o heavy metal desde o início tem sido uma música muito global, e essa banda brasileira teve um papel importante no metal, mesmo que não seja o que as pessoas pensam quando pensam sobre música brasileira.
Eu me interesso bastante nesses tipos de música que muitas pessoas estão ouvindo mas que não são levadas tão a sério. E isso tem sido uma constante ao longo da história do metal. É sempre interessante para mim como, muitas vezes, os tipos de música que não recebem tanto respeito, que não são considerados tão sérios, acabam sendo os tipos que realmente duram pra sempre.
MargeM: Nos últimos anos, temos visto muitos artistas e ouvintes que não se fecham em gêneros musicais. Misturam funk com sertanejo. House com forró. Os gêneros musicais ainda são importantes para uma definição estética da música? As pessoas deveriam se importar com gêneros?
Sanneh: Uma das coisas curiosas sobre misturar gêneros é que você só pode misturar os gêneros se esses gêneros existirem. E parte do poder de misturar essas coisas é que essas diferentes tradições precisam existir para que seja significativo quando, por exemplo, Anitta faz uma música como Funk Rave, porque ela está se inspirando em uma tradição específica, em um som específico e em uma cultura específica.
Os artistas, assim como os ouvintes, tendem a ser ambivalentes em relação aos gêneros. Querem não se limitar a um gênero, fazer todo tipo de música, mas querem também sentir que pertencem a um gênero. Nos EUA, seria um grande problema se você chegasse para Young Thug ou Drake e dissesse “você não é realmente hip-hop”.
Mesmo que eles não queiram ser limitados, eles também querem ser incluídos. Escrevo no livro sobre como um gênero é, na verdade, uma comunidade. Uma comunidade de ouvintes. Uma comunidade de músicos. Mas, como comunidades, às vezes os gêneros podem parecer sufocantes.
Um artista como Peso Pluma (rapper mexicano) está criando ao seu redor toda uma comunidade, e uma geração inteira de crianças está ouvindo Peso Pluma e se vendo nessa tradição. Às vezes novos gêneros se formam, às vezes os antigos desaparecem. Às vezes as linhas ficam um pouco difusas. Mas esse desejo profundo subjacente de fazer parte de uma comunidade, e também de querer ser livre de uma comunidade, eu não acho que isso muda.
MargeM: No passado, categorizar artistas em gêneros musicais era uma maneira comercial de promover artistas e álbuns. Você consegue imaginar como seria a música pop sem os gêneros? Ou os gêneros eram inevitáveis?
Sanneh: Era inevitável. Na música pop, a estrutura econômica, quais empresas estão ganhando dinheiro, molda não apenas a maneira como ouvimos música, mas a própria música, como ela é feita. Agora, na era do streaming, das playlists, estamos vendo alguns álbuns ficarem ainda mais longos. E algumas músicas ficarem ainda mais curtas. A música é moldada pela forma como a indústria a vende para nós.
Nesta era de Apple Music e Spotify, elas oferecem gêneros e subgêneros: rock, rap, country. Mas também te dizem “ah, talvez você gostaria de ouvir músicas de feriado”. Agora te oferecem um “mood”. Quer ouvir música para estudar? Para correr? E os moods podem se tornar gêneros.
Temos ainda os “gêneros de artistas individuais”. Em vez de ser fã de r&b, a pessoa é fã da Beyoncé, e passa o tempo online em uma comunidade de fãs da Beyoncé, e acompanho tudo o que ela faz.
MargeM: Essa fragmentação do ato de ouvir música, com a proliferação de playlists e a viralização de vídeos musicais em plataformas como TikTok afeta a forma como a música é produzida?
Sanneh: Sim, isso vai haver sempre. Mas suspeito que, ao longo da história, as pessoas que preferem discos, que ouvem primordialmente álbuns inteiros, talvez tenham sido uma minoria. A maioria das pessoas sempre deu preferência a ouvir hits, e é por isso que são hits, certo?
Se você é um superfã, então pode ir atrás das faixas menos conhecidas do disco. Mas a música pop sempre teve a ver com hits, são eles que impulsionam todo o resto.
Uma das coisas interessantes agora é que o streaming permite que diferentes ou improváveis músicas se tornem hits. As gravadoras sabem disso. Lançam toneladas de músicas e esperam para ver quais delas atraem a atenção das pessoas.
Você mencionou o TikTok. Ali, uma artista como Mitski, que pensávamos ser uma cantora de indie rock, teve um sucesso estrondoso.
E acho que, nesse sentido, as coisas ficaram um pouco mais imprevisíveis e um pouco mais impulsionadas pela audiência, porque as pessoas têm acesso a tantas músicas e vão dizer às gravadoras que esta é a música do hit.
MargeM: Voltando ao que você diz no início da entrevista, que gosta de escrever sobre músicas e artistas que outras pessoas parecem não levar a sério. No livro, você escreve sobre hair metal, sobre rock romântico. Você tem uma visão bem aberta de música, não?
Sanneh: Acho que cada gênero, cada comunidade tem algo a nos ensinar. E isso não significa necessariamente que gostamos da música que está surgindo dela. Sempre escrevi sobre música sob a suposição de que o leitor talvez não goste daquilo. Você está lendo meu livro, talvez você não goste de heavy metal, não se importe tanto com hip hop, talvez você nunca vá ouvir country e não saiba o que é techno.
A minha ideia é que você pode aprender algo ao entender como uma comunidade é estruturada, quais artistas são considerados importantes e por quê, quais são os argumentos que eles têm nessa comunidade.
Não é que toda música, todo gênero seja necessariamente bom. Todos nós decidimos do que gostamos. Não acho, especialmente na música pop, que existe uma definição de bom e ruim que seja separada do que gostamos ou não gostamos. Eu posso dizer por que outra pessoa gosta de ouvir. Posso dizer por que eu gosto de ouvir. Posso dizer por que aquilo foi influente. Ou talvez tentar explicar por que foi popular. Mas eu não posso dizer que você tem que gostar de algo, certo?
O que tento fazer não é chegar e dizer “ah, você está errado por não ter respeito por essas coisas; você está errado por não gostar dessas coisas”. Posso olhar e dizer “Ok, isso é interessante: por que essas coisas recebem respeito e aquelas não? Qual é a diferença?”.
MargeM: Você escreve no livro: “Quando reclamamos de música, no fundo estamos reclamando de outras pessoas”. A música é ainda um marcador de identidade?
Sanneh: É, porque a música é tão pessoal e é difícil que as nossas opiniões sobre ela não pareçam pessoais. Quando alguém diz a você: “Este é meu músico favorito”, e você diz a ela que a música é ruim, aquilo parece um insulto. E é por isso que essas discussões se tornam tão pessoais, e é por isso que nos importamos tanto.
Estamos nos definindo socialmente. Temos todas essas opiniões ou estereótipos sobre quem ouve qual tipo de música. Pessoas que ouvem isso, bem, você sabe, elas tendem a se vestir mais ou menos daquele jeito. Se você vai a um clube e estão tocando esse tipo de música, você sabe, essas pessoas não são legais.
É sempre sobre um tipo de mundo, uma cultura inteira. E parte da razão pela qual escrevi este livro é que… quando falamos sobre política, muitas vezes estamos falando sobre as divisões na sociedade e como precisamos curar essas divisões e nos unir mais. Com a música, às vezes é mais fácil ver por que, de certa forma, essas divisões podem ser algo bom. Há algo legal em haver divisões. Porque uma maneira de termos diversidade é termos grupos que são diferentes. Não estamos todos ouvindo a mesma coisa. Não temos todos os mesmos valores. E uma pergunta que para mim está no centro deste livro, e também da música, é: podemos celebrar o fato de sermos diferentes? No sentido de que fazemos parte de comunidades que discordam, que talvez nem sempre gostam umas das outras? Gostamos de ser diferentes de outras pessoas. Tanto quanto gostamos da ideia de todos nos reunirmos, também gostamos da ideia de sermos separados.
Falo no livro sobre a era da disco music, onde todos os tipos de músicos e ouvintes estavam todos se unindo (em torno da disco). Os Rolling Stones estão fazendo músicas disco, Rod Stewart está fazendo músicas disco, tudo está se tornando disco, certo? É quase uma utopia, a ideia de todos se reunindo na pista de dança. Mas também cria um dos maiores “backlash” (protestos) da história da música, exatamente porque algumas pessoas odeiam essa ideia.
Uma possibilidade é que a era do streaming seja um momento em que todos se unem. Muitas pessoas ouvindo a mesma coisa, e fronteiras se misturando. Você pode ouvir um pouco de Taylor Swift e um pouco de Peso Pluma, colocar um pouco de Bad Bunny, ouvir um pouco de Drake, de Anitta. É tudo um grande mundo misturado. E talvez o que está acontecendo é que estamos nos preparando para o próximo backlash. Estamos nos preparando para a próxima era de pessoas dizendo “Não quero ouvir essas coisas. Não quero ser como esses fãs do Drake. Não quero ser como aqueles fãs do Bad Bunny. Quero ser diferente”.
MargeM: Um tema discutido no livro é a autenticidade e como ela é percebida. Ainda é possível falar de autenticidade na música pop?
Sanneh: Sim, é quase impossível falar de música pop sem esbarrar na autenticidade. Mas é um conceito escorregadio, porque é muito difícil de definir. Algo que soa muito falso para uma pessoa pode parecer muito autêntico para outra.
A ideia de que o autêntico tem de ser áspero em vez de suave. Tem de ser bruto em vez de polido. Mas outras pessoas ouvirão autenticidade em uma balada pop altamente produzida. Encontrarão autenticidade e emoção em My Heart Will Go On, da Celine Dion. Da mesma forma que outra pessoa terá essa sensação ao ouvir uma banda punk. A autenticidade, por um lado, é uma qualidade muito importante, mas é muito difícil de defini-la.
MargeM: A crítica musical ainda importa? Você costuma ler resenhas de música?
Sanneh: Não sou um crítico de música em tempo integral do jeito que era, não escrevo resenhas, não faço uma lista no final do ano. Mas um crítico de música… há meio que duas definições. Uma é a profissão, e a profissão certamente é muito menos proeminente do que costumava ser. Costumava haver mais pessoas que eram pagas em tempo integral para ouvir música e depois escrever o que pensavam sobre aquilo. Em parte porque a música costumava ser cara, e parte do trabalho de um crítico era dizer aos leitores o que eles deveriam comprar. “Este disco novo é bom? Vou ler no jornal antes de gastar meus US$ 20”.
Como profissão, ficou um pouco obsoleta, Mas e se você definir crítica musical de maneira mais ampla, algo cultural? “Posso não ter um PhD em ouvir discos, mas sou alguém que ouve muita música e tem algumas opiniões sobre isso”. Muitas pessoas são assim. Então se você definir a crítica musical de maneira ampla, como a conversa que temos sobre música, bem, essa conversa está acontecendo mais do que nunca. Está acontecendo em lugares diferentes, e está acontecendo com pessoas que talvez não estejam fazendo isso como um trabalho, embora algumas delas estejam.
Gosto dessa conversa em sua forma mais enérgica, em sua forma mais ríspida. Gosto de ver o que as pessoas estão dizendo no Twitter ou nos comentários do YouTube, ou quais memes estão viralizando no TikTok. E isso, em si, é uma forma diferente de crítica musical, e é meio que a forma que temos agora. Culturalmente, a conversa está acontecendo tanto quanto sempre aconteceu.
MargeM: Tanto nesta entrevista quanto no livro você parece ser uma pessoa muito otimista, mente aberta, que procura entender por que algumas músicas são tão cativantes, por que alguns artistas são tão cativantes, não olha para artistas ou gêneros com desdém ou indiferença. Está correta essa percepção?
Sanneh: Bem, eu comecei em um lugar extremo, né? Como um punk de 14 anos que odiava absolutamente tudo que não fosse punk rock. Mas o punk meio que me ensinou a ouvir esse espírito de rebelião e surpresa e desafio e paradoxo em outros tipos de música.
Às vezes há músicas que me deixam frio e penso, as pessoas amam isso? Eu não entendo muito por quê, mas às vezes encontro uma maneira de amar essa outra coisa e de fazer parte disso. Me surpreende o que as pessoas amam, o que se torna popular. Sempre há coisas que eu nunca teria previsto que ficariam tão grandes quanto ficaram. É fácil para mim ser otimista porque estou sempre ouvindo algo que não esperava ouvir.
Os momentos em que me sinto pessimista são momentos em que sinto como se… um dos tipos de música que não amo, que é difícil para mim, é qualquer coisa que pareça retrô. Qualquer coisa que pareça como se alguém estivesse apenas tentando reviver algum gênero antigo e fazer música da mesma forma que faziam nos velhos tempos. Há momentos em que me pergunto, isso é o futuro? Tudo vai ser retrô? Tudo vai ser reciclado?
E então você tem esses momentos em que algo totalmente novo, totalmente diferente aparece. Mencionei o Peso Pluma como uma das grandes histórias de sucesso musical do ano, e obviamente ele está pegando coisas das tradições locais, mas ele também está fazendo algo que parece realmente novo.
As pessoas estão sempre inventando coisas, e nem sempre é um novo instrumento ou uma nova sensibilidade melódica. Às vezes pode ser apenas uma nova atitude. Pode ser uma nova maneira como as pessoas pensam sobre quem elas são. Pode ser uma nova audiência! Tipo, como o surgimento do reggaeton criou essa espécie de audiência em todo o mundo latino, de pessoas que se consideram fãs de reggaeton ou de trap latino. O surgimento de novos sons e de novas audiências é realmente empolgante.