Skate, drogas, Aids: os (quase) 30 anos de Kids
Uma revisão deste que foi um dos filmes mais impactantes dos anos 90. Como está o Threads. Atletas como creators. As melhores músicas do Cure. E mais, nesta MargeM 245
Nesta semana, estava tentando encontrar uma minissérie documental sobre a disco music (chama Soundtrack of a Revolution; se você achar, me avisa!) quando dei de cara com o doc We Were Once Kids.
Ainda não tinha visto. É um filme de 2021, que conta a história de outro filme, Kids. Este último virou cult, dirigido por Larry Clark e escrito por Harmony Korine.
Fui checar: Kids é de 1995. Está para fazer 30 anos.
Eu tinha 21 anos à época. Mesmo tendo ficado impressionado com aquele retrato cru e niilista sobre um grupo de jovens que passam o dia andando de skate por Nova York, tomando drogas e flertando uns com os outros, nunca mais vi Kids.
Não sei bem o porquê. Talvez porque apesar de ter ficado maravilhado com aquela galera jovem, livre, desencanada e que sabia andar muito bem de skate (eu não sabia), fiquei também chocado com a desesperança, a apatia, o consumo desenfreado de drogas e as atitudes de alguns deles.
Kids foi lançado no Brasil em outubro de 1995. Nos EUA, um mês antes. Mas o buzz em torno do filme havia começado em maio, com a exibição em Cannes. Um filme indie, com linguagem documental, sem nenhum ator profissional (alguns, como Chloe Sevigny, Rosario Dawson e Leo Fitzpatrick, virariam atores; outros eram skatistas e continuariam skatistas), ganhava bom espaço no mais prestigioso festival de cinema do mundo.
Skate, drogas, estupro, a epidemia da Aids, uma juventude desolada e entediada. Tudo isso está em Kids.
Mesmo naquela era pré-internet, o burburinho foi forte aqui em São Paulo. Naquele momento pós-Kurt Cobain, havia gente que olhava para a frente e estava frequentando clubinhos de eletrônica como o Hell's; gente que estava vidrada na primeira temporada de Malhação; gente que tentava imitar os passos do então novo grupo É o Tchan; gente que tentava decifrar o britpop de bandas como Blur, Oasis e Pulp; gente que não parava de ouvir Raio X Brasil, o primeiro disco dos Racionais.
O buzz de Kids pegou todo mundo. O que era esse filme novo que retratava um bando de moleques que passavam o dia andando de skate e ficando chapados?
Vi no cinema. Depois, só agora, nesta semana. Primeiro, assisti We Were Once Kids. Os skatistas/atores relembram como era a Nova York daqueles anos 1990 e como surgiu o filme. Harmony Korine, por exemplo, frequentava a Washington Square, ponto de encontro de jovens de diversas cenas e onde os moleques andavam de skate.
O doc é tão revelador quanto triste. Harold Hunter, um dos mais talentosos skatistas e que atuou em Kids, vivia em uma casa com pais junkies e morreu, anos depois, após uma overdose. Outro dos skatistas e um dos protagonistas de Kids, Justin Pierce, cometeu suicídio.
Já adultos, alguns dos atores/skatistas do filme relatam que o gosto deixado por Kids foi bem amargo: as jovens eram apenas coadjuvantes dos meninos; quando o longa foi premiado em Cannes, apenas Clark e Korine estavam lá. Os atores? Não foram chamados. Korine foi escalado para escrever roteiros e largou a Washington Square. Clark ganhou uma grana boa com Kids, fez expo de fotos dos meninos em galeria de Nova York. E, tirando um cachê mixuruca, não deu um tostão para nenhum deles.
Sobre o filme em si, ainda conserva muito da originalidade estética. Há algo de fascinante no niilismo e na desolação daqueles jovens que pensavam que a vida girava em torno do skate e de um cigarro de maconha. No olhar de hoje, algumas cenas são problemáticas (como a do garoto negro na piscina). É um “filme-voyeur”, em que a câmera observa os jovens com distanciamento. Há uma “mensagem” (moralista? transgressora? vai do gosto do freguês), mas ela não é aparente. Os meninos ganham muito mais tempo de tela, mas são bobos, manipuladores e violentos. As meninas são bem mais maduras, sensíveis e responsáveis. Vale (re)ver.
Fui atrás do que foi falado sobre Kids em 1995 e pouco depois. Em 1997, a bell hooks, por exemplo, discutia o seguinte (descrição tirada do vídeo Cultural Criticism and Transformation):
“Kids me fascinou como filme exatamente porque, quando você ouve falar sobre ele, parece ser a encarnação perfeita dessas noções pós-modernas de jornadas, deslocamento e fragmentação. No entanto, quando você vai assistir, percebe que ele tem uma visão bastante conservadora sobre gênero, raça e a política em torno do HIV”.
E:
“Muitas pessoas que viram Kids apenas pelo prisma da sexualidade transgressora sentiram que precisavam apoiá-lo, especialmente em uma época em que tanto financiamento artístico e tanto esforço para censura eram direcionados a eliminar imagens consideradas vulgares ou obscenas — imagens eróticas vistas como uma ameaça aos valores familiares, entre outras. Então, muitos acharam que deviam apoiar Kids 100%, e isso me incomodou muito, porque ele tinha uma visão profundamente conservadora em relação à política de raça e gênero”.
O famoso crítico Roger Ebert chamou a atenção para a “autenticidade” de Kids, o que deixaria para trás qualquer outro longa da época (essa fala está no doc).
No dia da estreia do filme aqui, o Contardo Calligaris afirmava:
“Kids é um dia de verão na vida de um pequeno bando de adolescentes nova-iorquinos. Não são nenhuma gangue de marginais, só jovens de férias. Eles não constituem nenhum exagero, participam da banalidade cotidiana. Erram pela cidade, um deles seduz garotinhas virgens dando cantadas banais, mas eficientes, roubam uma cerveja e dois pêssegos, se drogam, nadam em uma piscina fechada, batem severamente, em grupo, num passeante que reage a suas provocações, fumam, bebem e alimentam uma fala que nunca, no dia inteiro, passa de uma litania de palavrões, mais feitos para confirmar a adesão de todos a um código comum do que para se expressar”.
Era uma época em que a Ilustrada, e os jornais em geral, tinham grana para publicar páginas e mais páginas sobre política, esportes e a paisagem cultural do Brasil e do mundo. Contei OITO textos sobre Kids apenas na Ilustrada daquele 1 de outubro de 1995. Um deles era do escritor Bernardo Carvalho:
“Kids é provavelmente um filme ‘moralista’, mas num sentido radical, tão moralista quanto um texto trágico. O filme não pode servir, por exemplo, de argumento para a cruzada moralista da direita americana, justamente por ser excessivo, radical e trágico. De fato, a direita americana vê que há algo errado nessa sociedade, mas em sua hipocrisia moralista não pode suportar a idéia de que o erro esteja no princípio, numa espécie de essência, na própria forma como se constitui essa sociedade (e na própria forma que essa mesma direita pretende continuar promovendo)”.
E:
“O que Kids faz é criar uma obra trágica como há muito não se via na cultura americana, que parecia ter banido o sentido trágico tanto da arte como do ser humano, na tentativa de viver uma produção sublimada, de entretenimento no sentido de distração, que apenas corrobora essa negação infantilizada do sofrimento. A violência só pode ser ‘cult’ na carne de quem não a conhece”.
“Kids é um filme sobre gente que não tem nada pra fazer. Gente que vive um dia depois do outro, sem expectativas ou perspectivas. Gente perdida.
Não se trata de ócio ou preguiça, mas um far-niente cotidiano, sem estresse, quase leve. Esses kids são bon vivants. ‘No problema’ -parecem dizer o tempo todo.
A desocupação impera”.
(No dia seguinte, a Folha chamou duas profissionais que trabalhavam no órgão de classificação indicativa do Brasil para escrever um texto sob o título “Kids - Meu filho pode assistir?”.)
Em 2015, nos 20 anos de lançamento do filme, o New York Times publicou a matéria “Kids, ontem e hoje”. Trechos:
“Para os alarmistas culturais da era Clinton nos anos 1990, o filme Kids representava a culminação de seus medos. O filme gira em torno de um grupo de adolescentes desajustados de Nova York que passam 24 horas bebendo, fumando, brigando e se entregando a sexo inseguro e emocionalmente vazio. É um O Senhor das Moscas com skate, óxido nitroso e hip-hop”.
“Duas décadas depois, Kids se tornou um clássico do cinema alternativo e um marco cultural, celebrado no mês passado com uma exibição na Brooklyn Academy of Music, que reuniu o elenco pela primeira vez, e uma coleção comemorativa de roupas de skate da Supreme”.
A última fala de Kids: “Jesus Cristo, o que aconteceu?”.
Copo meio cheio: o Threads já abocanhou 275 milhões de usuários ativos.
Copo meio vazio: os criadores não sabem para que o Threads existe e acham que a rede ainda não é relevante para gerar buzz.
Ainda: a Meta definiu que o Threads vai começar a ter anúncios em 2025.
“Atletas são os novos criadores. Atletas que não são ativos nas redes sociais estão basicamente perdendo grana.”
A frase é de Jas Dhami, VP da área de esportes da agência We Are Social.
Dá pra substituir atletas por músicos, atores, chefs...
A frase está nesta ótima matéria sobre como está sendo feita a estratégia de conteúdo do Cristiano Ronaldo no YouTube. (O cara ganhou 1 milhão de inscritos em 90 minutos.)
Tirando as fotos de Kids, as imagens desta newsletter foram finalistas do prêmio de retratos Taylor Wessing.
→ Um ranking com as 20 melhores músicas do Cure. E como Robert Smith tornou-se o ativista mais persistente do rock.
→ O YouTube testa uma interface semelhante à do TikTok (o que pode mudar a plataforma "para sempre").
→ O app Hangout (um herdeiro do Turntable.fm) permite aos usuários tocar como DJs
→ No mercado de streaming, muita gente escolhe “pausar” a assinatura.
→ A “realidade de comprar uma casa velha e barata pelo Instagram”.
→ Johann Hari, autor de Foco Roubado: “Sua atenção não sofreu um colapso, ela foi roubada”.
→ É algo que realmente funciona ou apenas mais uma plataforma que vende o que não conseguirá entregar? Tô falando da Superpower, “uma das novas empresas de ‘concierges’ de longevidade que monitoram a saúde dos clientes por meio de painéis de biomarcadores no sangue, análise de dados com IA e coquetéis personalizados de vitaminas ou aminoácidos”.
→ O Takashi Murakami lançou uma linha de tênis.
→ O Coliseu de Roma tá no Airbnb.
→ Uma viagem no tempo através de uma TV retrô.
eu vi christiane f com 12 anos e vi kids bem jovem ainda, com uns 15 ou 16, e foram dois filmes que me deixaram muito impactada. tive muitos pesadelos hahaha, juro. christiane f já revisei várias vezes na vida adulta (continuo tendo pesadelos quando assisto), acho que chegou a hora de revisitar kids. achei muito, muito interessante essa curadoria da crítica do filme da época do lançamento!!